Temas como perícia judicial, processos na área de saúde e trabalho, saúde mental e precarização do trabalho foram discutidos durante o II Congresso Internacional de Ciências do Trabalho, Meio-Ambiente, Direito e Saúde. Os debates mostraram que o trabalho precisa ser transformado, o sujeito coletivo valorizado e o trabalhador reconhecido.

O evento, organizado pela Fundacentro, pela Associacion Latinoamericana de Abogados Laboralistas – Alal e pelo Ministério Público do Trabalho – MPT, foi realizado entre os dias 19 e 22 de agosto na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP.

Na abertura, o vice-presidente da Alal, Luiz Salvador, denunciou os problemas vivenciados pelos trabalhadores e a necessidade de busca de um ambiente de trabalho livre de risco e adoecimento ocupacional. “No Brasil temos uma legislação muito boa. O problema é que não há efetividade. Está acontecendo um assassínio coletivo doloso, ainda que seja dolo eventual.”

Já o presidente da Alal, Luis Enrique Ramirez, classificou as mortes ocorridas no trabalho de “genocídio da classe trabalhadora”. Ele criticou ainda a visão de que não existe modelo alternativo ao capitalismo e que o adoecimento e acidentes são o preço a se pagar pelo progresso. Os trabalhadores, ao sair para ganhar vida, não podem perdê-la.

“Este encontro ímpar fornecerá a nós todos, preocupados com o genocídio dos trabalhadores, ótimos resultados”, completou Célia Regina Camachi Stander, vice-procuradora chefe do MPT – 2ª Região.

Conferências
Na conferência de abertura, o jurista Dalmo Dallari, professor emérito da USP, falou sobre a democratização do Judiciário. Para tanto, fez um percurso histórico a partir da criação da constituição escrita na Filadélfia, nos Estados Unidos, e a Constituição da Revolução Francesa, no século XVIII.

Após a Primeira Guerra Mundial, há mudanças na concepção dos direitos e é criada a Organização Internacional do Trabalho – OIT. Outro marco é a criação da Organização das Nações Unidas – ONU depois da Segunda Guerra.

Na avaliação de Dallari, o Brasil foi fortemente influenciado pelo modelo francês, inclusive na organização dos poderes, e a Constituição de 1988 trouxe inovações significativas.

O encerramento do evento também trouxe outra importante conferência, proferida pelo ministro do Tribunal Superior do Trabalho – TST, Cláudio Brandão. Ele buscou falar sobre os problemas, avanços e progressos na área de saúde e trabalho. “O trabalho não pode ser fator de sofrimento. De que maneira o elemento trabalho contribui para o adoecimento? Há uma relação direta entre trabalho e saúde”, defendeu.

O ministro apontou problemas como as metas abusivas, competitividade e assédio moral organizacional. Também buscou apresentar os artigos constitucionais e leis que confirmam a saúde como direito fundamental. A Constituição é base para os fundamentos do direito ao trabalho de forma inclusiva, reconhecendo que o trabalhador é uma pessoa. Assim há uma potencialidade transformadora.

Segundo Brandão, não é possível atuar somente no reparatório. Há o dever de se dar efetividade ao que está na legislação e fazer com que o “dever ser” da norma se torne o “ser da realidade social”.

A saúde como direito fundamental é um avanço, mas a baixa efetividade é um retrocesso. “Temos que entender que a Constituição não é enfeite, é a nossa vida que ali está”, conclui o ministro Cláudio Brandão.

Debates
O Congresso contou ainda com outras seis palestras e seis mesas de debates, cada uma com três expositores. Especialistas das áreas de saúde, jurídica e da comunicação debateram a perícia na Justiça do Trabalho, a saúde do trabalhador e controle social, os impactos econômicos e sociais de grandes projetos na Amazônia, a judicialização das políticas públicas de Saúde e Previdência, a inversão do ônus da prova e o direito penal trabalhista.

“Nós acertamos em escolher os temas e os palestrantes. O debate suscitado pelos participantes foi muito importante. O evento foi uma prova de que os saberes de todos os lados são fundamentais para construir uma nova forma de ver o trabalho em todos os seus aspectos”, afirma a pesquisadora da Fundacentro, Maria Maeno, uma das organizadoras do evento, em conjunto com as tecnologistas Daniela Sanches e Cristiane Queiroz.

O presidente da Alal, Luis Enrique Ramirez, também apresentou durante o Congresso a Carta Sociolaboral Latino-americana, que propõe um novo modelo de relações de trabalho visando à proteção da pessoa que trabalha. “Queremos colocar a dignidade do trabalhador no centro da cena e transformar a realidade para construir uma sociedade com justiça social”, conclui Ramirez.

A Carta defende que os trabalhadores devem impulsionar o processo de integração regional e que seja estabelecido um patamar comum de direitos e garantias.

Perícia
A perícia na Justiça do Trabalho, além de ser tema de uma das mesas, permeou diversas discussões. Para a desembargadora do TRT da 12ª Região – Santa Catarina, Viviane Colucci, há necessidade de a perícia ser realizada por vários profissionais da saúde.

A desembargadora apontou os fundamentos que a perícia deve adotar. Por exemplo, a dimensão metaindividual, a superação do modelo do ato inseguro, os fatores multicausais, a vistoria no local de trabalho, a adoção do modelo biopsicossocial para avaliação da incapacidade, a adoção da metodologia do Nexo Técnico Epidemiológico e a avaliação da existência da contribuição ocupacional.

Outro ponto importante é que identificados os riscos pela prova pericial, é possível uma reorganização do ambiente de trabalho e que o trabalhador não retorne ao local que causou o adoecimento.

“A perícia devia se deter na escuta. O perito não pode se contentar com a descrição das empresas. Deve perguntar ao trabalhador, porque o trabalho real é muito diferente de qualquer documento declaratório da empresa. Mesmo em loco é difícil detectar a forma de gestão, o controle do trabalho”, avaliou Maeno.

Também se deve sempre perguntar: Como é o local de trabalho? Como é a organização do trabalho? Para tanto, é preciso avaliar as formas de avaliação e controle, pressão por produtividade, metas de produção, ritmo de trabalho, jornada, sempre ouvindo o trabalhador.

“É fundamental termos o espírito de investigação. Todas essas questões devem ser consideradas pelo perito, mas raramente vemos nos laudos periciais”, completou a médica da Fundacentro.

Precarização
A precarização do trabalho foi outro tema que apareceu em diferentes apresentações. A psicóloga e professora da PUC-SP, Renata Paparelli, relatou o caso dos trabalhadores de telemarketing que não têm direito de ir ao banheiro quando se deseja, “um atentado à condição de sujeito das pessoas.” Não se respeita o limite subjetivo dos trabalhadores.

A gestão flexível inspirada no toyotismo traz formas mais sutis de controle do trabalhador, que trabalha em equipe, em grupo, por meta. Segundo a psicóloga, parece, de fora, um controle menos intenso, mas não é. Assim se passa da obediência requerida ao trabalhador pelo fordismo/taylorismo para a necessidade de adesão, o “saber ser” para dar conta das metas e todas as exigências.

A questão da precariedade está diretamente ligada ao cenário de adoecimentos mentais relacionados ao trabalho. A psiquiatra e professora aposentada da USP, Edith Seligmann-Silva, apontou como fontes laborais do desgaste mental o ambiente químico, físico e biológico; a administração e organização do trabalho; as inadequações em relações sociais de trabalho e formas de gestão dos tempos, atividades e pessoas; atividades de trabalho físico e mental (cognitivo e afetivo) em desacordo com as características e necessidades humanas.

Para a psiquiatra, o termo desgaste parece ser uma opção conceitual integradora. Ela falou sobre alguns problemas como o estresse crônico, que gera alterações permanentes. Por exemplo, a hipertensão arterial pode ser causada pelo excesso de controle e repressão vivenciados pelo trabalhador.

Também há uma dominação pelo medo no mundo do trabalho e as precarizações das relações de trabalho, da própria cultura e da política na avaliação da professora da USP.

A precariedade também pode ser expressa por meio das diferentes estatísticas apresentadas ao longo do Congresso. A professora universitária de Cuba e secretária geral da Alal, Lídia Guevara, afirmou que 5 milhões de acidentes de trabalho ocorrem por ano na América Latina. São 36 acidentes de trabalho por minuto, e 300 trabalhadores mortos por dia.

Transformação
O juiz do trabalho da 15ª Região, Jorge Luiz Souto Maior, em sua palestra, levantou algumas questões a serem pensadas nesse cenário de precariedade, quando falou sobre o desafio do controle social, que tem dificuldade em existir na prática.

Quando se criou a OIT, estabeleceu-se o princípio de que trabalho humano não é mercadoria. Assim há necessidade de se estabelecer limites para a relação capital e trabalho, visando à proteção humana.

O enfrentamento à precariedade passa pela coletividade e em acreditar no sujeito histórico construtor de mundo. Mas há dificuldades para isso. “É perigoso falar em nós. É uma coisa ultrapassada. Nada como uma selfie, um empowerment, uma autoajuda. No máximo uma colaboração onde sua singularidade tem que sucumbir”, lista de forma crítica a pesquisadora e professora do Centro Universitário Estácio da Bahia, Petilda Vazquez.

Mais a frente defende: “Eu já disse, insisto e repito. Homens e mulheres não são suportes, são realizadores e construtores. Paulo Freire nos lembra disso. Meu encantamento é pelos sujeitos instituidores e não pelas instituições.”
Nesse sentido, o controle social precisa ser feito a partir da voz do sujeito que demanda, não como dimensão de força jurídica de uma instituição. Também é preciso que haja solidariedade para a constituição de um sujeito coletivo no mundo do trabalho.

“Revolução é mudar tudo que tem que ser mudado. O mais importante é a justiça social – tratar todos como seres humanos”, considera Lidia Guevara.

Ao que a fala de Edith Seligmann-Silva complementa ao expor que é preciso “pensarmos saúde no marco da ética, da dignidade humana, da justiça. Temos que estar todos juntos, os profissionais da saúde, do direito, da economia.” Mais uma vez emerge a necessidade de uma solução coletiva.

“São necessárias ações que reestabeleçam a autonomia. Restaurar a dimensão humana no trabalho com o respeito à natureza. Desintoxicar as mentes dominadas pelo medo. Combater a injunção vencer para sobreviver”, conclui Seligmann-Silva.

Amazônia
Em relação às discussões sobre a Amazônia, ficou claro que há um desconhecimento da sociedade sobre os problemas vivenciados pela região, conforme apontou o jornalista Lúcio Flávio Pinto, único brasileiro listado entre os 100 heróis da informação, pela organização Repórteres Sem Fronteiras – RSF neste ano.

Lúcio Flávio criticou, por exemplo, o subsídio estatal dado à Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Muitas dessas histórias são relatadas na publicação alternativa Jornal Pessoal, disponíveis em bancas de jornal no Pará ou na coleção disponível na Biblioteca da Universidade Flórida.

Ainda na mesa sobre a Amazônia, a pesquisadora da Fundacentro/PA, Laura Nogueira, apresentou pesquisa realizada no Pará sobre os trabalhadores da cadeia do alumínio. “O sofrimento se manifesta em falas que mostram medo, estresse, sentimento de injustiça, falta de reconhecimento, desamparo, sentimento de inutilididade”. Já os terceirizados “se sentem trabalhadores de segunda categoria”.

A gestão, por sua vez, considera que os trabalhadores não têm cultura de segurança. “A necessidade de seu engajamento é visto como fundamental para a segurança. Quando o acidente acontece, o trabalhador é culpado. A maneira como é feita a gestão é punitiva e controladora, deixa pouco espaço para autonomia e eles percebem isso como não reconhecimento do Trabalho”, critica Nogueira.

Justiça do Trabalho
A judicialização das políticas públicas de Saúde e Previdência foi apontada como importante para afirmar direitos àqueles que não conseguem alcançá-los. No entanto, existe dificuldade de acesso ao Judiciário. “Quem tem mais recursos, consegue os melhores advogados e mais acesso aos direitos”, avalia o advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR.

Já no debate sobre a inversão do ônus da prova, o juiz do Trabalho da 15ª Região – Araraquara, José Antonio Ribeiro, defendeu a responsabilidade objetiva, apesar de muitos juízes aplicarem a responsabilidade subjetiva.
“A prova em matéria de acidente do trabalho é complexa. Dependemos dos trabalhos dos peritos, e os trabalhos periciais não têm sido bons. Não conhecem os princípios da Justiça do Trabalho e os princípios da inversão do ônus da prova. Muitos têm problemas técnicos”, critica Ribeiro.

O desembargador do TRT da 9ª Região – Paraná, Ricardo Tadeu da Fonseca, por sua vez, citou súmula sobre a responsabilização do poluidor e que deveria ser usada para os causadores de doenças. Também falou sobre um acórdão que fez dizendo que o item 5.13, do Anexo II da NR-17, que veda competição exacerbada, uso de adornos como punição e exposição pública, deve ser aplicado a todos os trabalhadores.

Na avaliação de Fonseca, os métodos de gestão têm sido problemáticos assim como jurisprudências que tratam assédio moral organizacional como se fosse individual.

Já a mesa sobre direito penal trabalhista apresentou um panorama do sistema penitenciário brasileiro. Também foi apontada a necessidade de resignificar o direito penal do trabalho e de se superar a individualização, a verificação simples de uso de EPI e culpabilização das vítimas na busca das causas do acidente de trabalho.

“Defendo aqui que as consequências civis trabalhistas e administrativas não têm bastado. Para casos graves, o remédio tem que ser mais forte. Tratamento tem que ser repressivo do ponto de vista do MPT e da Justiça do Trabalho”, afirma o procurador do Trabalho da PRT da 20ª Região – Sergipe, Raymundo Lima Ribeiro Júnior.

Fonte: Revista Proteção

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